sexta-feira, 24 de novembro de 2017

23 de Novembro

Davam três da tarde. Rebati o calor com um banho e decidi gastar o solado emborrachado das botas até o senhor que me vende livros. Depois do desconto bati a cara contra o sol e reconheci um amigo na calçada, que me deixara pela última vez numa mesa de bar com a conta paga. Caminhamos juntos sem que pudesse lembrar-lhe o nome, misturando as horas ociosas daquela quinta e as despejando na primeira esquina que encontramos cerveja. Nenhum de nós mexeu no celular.
Eu paguei a conta e fomos comprar ervilhas de aniversário para a melhor amiga que alguém pode ter no mundo. O peso da mochila aumentou.
Paramos noutro bar, mais barato e sujo que o primeiro, onde um gordo nos atirou chicletes e balas de café e convidou meu companheiro - que a essa altura havia descobrido que se chamava Diego - para limpar as vastas terras que ele tinha em algum lugar de seus sonhos fecundos. Saí desse bar fortalecida pelo álcool e pelo espectro do lesbianismo que me atribuíam na rua. Os livros, as ervilhas e a orientação sexual me deram poder.
E então o dia caiu nos dentes do meu companheiro que sorria enquanto eu embarcava no circular intraurbano com destino à institucionalização dos piores dos meus pensamentos. Sentada com o caderno no colo fiquei tentando vencer o álcool e o balanço da viagem para escrever, descendo depois de duas páginas. Ainda via o sol e tinha certeza que o astro me via.
Lavei-me na primeira pia que encontrei enquanto lésbicas reais resistiam pixadas na parede do banheiro e caminhei até a sala pra conferir que meu lugar não estava vago. Resignada dirigi-me ao centro, onde descansei o peso da minha bunda enquanto tentava distinguir as letras brilhantes na minha cara. As cadeiras da frente estavam desocupadas, criando um vão providencial entre o professor e eu, o que lho permitia inspecionar o mais fino dos meus movimentos e me impedia de arrancar da bolsa meu novo livro daquele velho boca suja. Continuei a escrever em meu caderno. Tirei os sapatos. Saí da sala descalça, fumei um cigarro, voltei e por fim peguei o livro.
Nao consigo me lembrar o assunto da aula.
Não gosto de chantilly nem de celular.
Foi mais legal viver esse dia que narrá-lo.

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