sábado, 9 de fevereiro de 2019

Nada pra ela

Um dia ela sonhou com o calor na pele do final do dia, aquecendo os movimentos do manejo do varal
sonhou com a música do carro e com a inocência de vozes agudas recriando arranjos no banco de trás
sonhou em ensinar a contar as estrelas,
a ser homem
a ser mulher
Sonhou com as histórias que poderia encenar com gravetos,
e com os milagres de transformar o salário em abrigo
Ela sonhou com o cheiro dele,
com o beijo que não se pede no meio das borbulhas da panela
e com as brigas que alimentam a cama
Sonhou em trabalhar menos, em beber menos, em parar de errar
Sonhou em nunca mais acordar com o pavor de estar sozinha no meio de uma tempestade de verão
e em ter quem lhe trocasse a lâmpada ou dirigisse até médico
Sonhou em ter de quem cuidar
e lhe obrigar a ser cuidada
Assoprar sua arrogância
E não ter mais o medo do dia seguinte

Ela sonhou...
sonhou muito
sonhou acordada
no tempo em que não pôde dormir,
porque dormir sempre a assustou

Misturou sonho, fuga, desejo e desespero
em seu elixir particular de sobrevivência
Bebeu,
e deixou tudo em sonho,
pois essas coisas não eram pra ela...