Ela queria, calou. Se despediu no portão e entrou.
Eram quase três da manhã e como o sábado já havia caminhado pelo avesso, não alimentava expectativa nenhuma naquele anúncio de domingo. Mas
assim que colocou os dois pés dentro da casa foi acometida por uma pressão
violenta dentro do corpo, como se metade dela tivesse ficado do lado de fora e lhe faltasse o pedaço mais importante de si mesma: aquele que lhe permitia respirar! Jogou a mochila quase vazia no chão, voltou à
rua e o chamou.
Ele já tinha dispensado do outro lado do muro comum o que carregava nas mãos,
voltou apressado, como se também tivesse deixado seu ar em frente a casa dela. Seus olhos vermelhos transbordavam ansiedade, perfuravam-na afim de descobrir porque ela o chamava de volta, mesmo que no fundo soubesse que não havia motivo e que motivo nenhum faria diferença para os dois àquela altura da madrugada. Ela, por sua vez, não tinha a menor ideia do que dizer quando o viu chegar e cuspiu uma frase dobrada e fácil de encontrar na ponta da língua ardida de álcool, o convidando para
queimar um restinho de estrela.
Ele negou, pois já brilhavam demais. Vestiu os olhos de sono e voltou para casa.
Ela respirou. A sensação não foi
de perda ou ganho, vitória ou derrota. Foi neutra, besta, indiferente. Sensação de quem tenta e se satisfaz simplesmente por ter tentado. E a
pressão se esvaiu no contato dos tênis com o chão.
Entrou na casa de novo e girou a chave na porta como nunca faz, como se para além de portas e fechaduras, trancasse um momento do lado de fora e garantisse seu isolamento do mundo. Agora era só ela e seus pensamentos. Tirou os tênis, as meias, o jeans e o sutiã e os espalhou pelo chão do quarto. Lavou a fuligem de fogueira que tinha acabado de
descobrir nas mãos e esfregou o rosto, abriu a janela para que o céu enegrecido viesse se deitar com ela, apagou a
luz e soltou o peso do corpo na cama. Debaixo de um cobertor azul começou a esboçar uma das cenas que compõe o prelúdio dos sonos dos cancerianos, onde ele
voltava, abria a porta como noutras vezes, entrava arfando, sustentando um olhar duro e decidido, tirava sua própria roupa pra não perder tempo e se jogando sobre ela.
Ia-se deleitando com o que imaginava, pois para aquela menina a liberdade de sua mente lhe bastava.
Foi então que num repente escutou o portão abrir, ou imaginou tê-lo escutado, já não tinha certeza. De qualquer maneira o som injetara mais emoção ao roteiro que ia pintando no travesseiro e podia sentir seu coração bater um pouquinho mais forte. Concentrou-se e tentou distinguir o sonho da materialidade com a qual estava tentando lidar,
afinal, era a primeira noite que podia se lembrar em que os dois não terminavam sem
roupa, juntos, na cama. Mas o barulho perfurou o sonho e ela teve certeza de que havia alguém que depois de forçar a maçaneta algumas vezes, bate.
...
Ele deve ter entrado na casa que faz divisa com a sua, urinado, mergulhado no pequeno universo de seu quarto, pegado a camisinha, metido no bolso direito da bermuda e saído de novo. Deve ter parado por dois minutos em seu portão pra pensar. Ou gastou esses minutos com outra coisa...
...
Ela se arremessou de pés juntos no
chão frio e caminhou rápida e meio assustada em direção ao vulto que esperava colado na porta de vidro. O coração sorri. Abriu a porta e o viu entrar com apenas metade daquela decisão que imaginava, mas com
um sorriso que valia por mais do que o dobro dela.
Não fumaram estrelas, mas viraram fumaça na boca da noite.