domingo, 3 de dezembro de 2017

Tudo laranja

Sempre escrevi sobre o amor.
Sobre o sabor do amor. Sobre a falta do amor. Sobre o sabor da falta do amor.
Talvez tenha me cansado.
Depois que o choro virou luxo e só encontro a liberdade em espaços espremidos de tempo em que os outros não dependem de mim, o amor pegou uma garrafa de cerveja gelada e entrou num ônibus. Não sei quando ele volta. Deixei ir.
Da beira dos trinta resolvi experimentar escrever sobre outra coisa. Talvez sobre a beira dos trinta.
...
Morava de aluguel numa casa com mais duas meninas e um gato. No começo tinha um namorado que fazia toda a manutenção e os reparos físicos daquela velha estrutura. Ele era dono de um depósito de materiais de construção e de uma grande barriga. Gostava dele.
A primeira coisa que aconteceu quando ele me deixou foi explodir a torneira da pia do banheiro. As coisas simplesmente desmontavam na casa. Gastei onze reais com o reparo e me tornei auto-suficiente. O que quer que quebre depois dele, eu conserto.
Fiquei morando lá uns quatro ou cinco meses depois de perder o emprego. Era um lugar adorável, escondido entre ladeiras imensas e escadarias de calçamento, perto do centro. Não se chegava lá de ônibus. Bebia todos os dias. Chamava os amigos pra jantar e sempre pedia cerveja. Não fazia planos nenhum além de beber e cozinhar. Acho que estava deprimida.
Deitei num domingo e sonhei com  meu biso, o índio carpinteiro. Nunca antes havia me aparecido em sonhos, aquele velho que me ensinou mais da metade das coisas que eu sei. Sonhei que ele me chamava de volta pra casa, em suave agonia.
Na manhã seguinte vi as fotos e filmagens do incêndio no grupo da família: o sítio que era dele e onde toda minha família morava estava pegando fogo. Quilômetros de fogo, talvez causados pela inofensiva bituca de um cigarro dispensada pelo vidro de um carro que nem imagina que condenou um monte de famílias.
Comecei a fazer planos.
Havia passado um tempo com o pé engessado e antes mesmo de conseguir caminhar pisava no acelerador pra tirar as coisas e as velhas do sítio pra alocá-las numa casa na cidade. O fogo durou quase duas semanas.
Estagnei os planos enquanto lutava pela sobrevivência. Nem sei onde foi parar meu coração nesse período.
Assim que o último foco de incêndio apagou na mata voltei praquela velha casa onde eu bebia, cozinhava, cuidava do gato e mandava e-mails poéticos de madrugada.
O final do ano estava se aproximando, trazendo consigo o final das minhas reservas financeiras. Recomecei a fazer os planos.
Fui assaltada num sábado e acho que meus planos se arremataram ali.
Vendi tudo e vim embora, enfiando uma casa e um gato no quartinho de três metros que dormia quando era criança. Belo quarto.  A janela enquadra exatamente o pedacinho da montanha onde o sol se esconde. E tudo fica laranja. Gosto daqui. Adoro laranja.
Continuo desempregada, mas meu dinheiro ainda não acabou. Continuo escrevendo e-mails poéticos para pessoas que não me respondem (o que inclui a Marianna). Ainda bebo e cozinho. As matas estão se recuperando e acho que não estou mais deprimida.
O amor?
Sei lá, não penso mais nele.