quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Bebo

Nunca fui boa em lidar com a dor e talvez não tenha tido o prazer de conhecer alguém que fosse.
E mesmo assim também nunca deixei de amar e me maravilhar com forma como o sol faz as pontas das árvores brilharem e como ele abraça meu corpo de ouro. 
Nunca me apartei do prazer promovido pelo contato da pele quente com a água gelada, ou o de abrir os olhos submersa e ver feixes de luz dançando sob o som de um silêncio molhado.
Minha vida não é mais bela que a sua, apenas aprendi a fazer piadas com a loucura e origamis com as tristezas para sobreviver.
Tenho uma caderneta para contabilizar as perdas e guardar as melhores combinações de temperos para meus dessabores.
A voz de meu pai sempre lembrando que "o lugar de chorar é na cama quente" parou de ecoar no reboco da minha caixa craniana quando o choro se tornou um luxo.
Não me importo em perder brigas, pois eu mesma tatuei todas as minhas cicatrizes.
Não me importa que te importe se sou feliz ou não.
Olho para a vida e aceno.
Eu aceno e sorrio.
Eu aceno, sorrio e bebo.


sexta-feira, 24 de novembro de 2017

23 de Novembro

Davam três da tarde. Rebati o calor com um banho e decidi gastar o solado emborrachado das botas até o senhor que me vende livros. Depois do desconto bati a cara contra o sol e reconheci um amigo na calçada, que me deixara pela última vez numa mesa de bar com a conta paga. Caminhamos juntos sem que pudesse lembrar-lhe o nome, misturando as horas ociosas daquela quinta e as despejando na primeira esquina que encontramos cerveja. Nenhum de nós mexeu no celular.
Eu paguei a conta e fomos comprar ervilhas de aniversário para a melhor amiga que alguém pode ter no mundo. O peso da mochila aumentou.
Paramos noutro bar, mais barato e sujo que o primeiro, onde um gordo nos atirou chicletes e balas de café e convidou meu companheiro - que a essa altura havia descobrido que se chamava Diego - para limpar as vastas terras que ele tinha em algum lugar de seus sonhos fecundos. Saí desse bar fortalecida pelo álcool e pelo espectro do lesbianismo que me atribuíam na rua. Os livros, as ervilhas e a orientação sexual me deram poder.
E então o dia caiu nos dentes do meu companheiro que sorria enquanto eu embarcava no circular intraurbano com destino à institucionalização dos piores dos meus pensamentos. Sentada com o caderno no colo fiquei tentando vencer o álcool e o balanço da viagem para escrever, descendo depois de duas páginas. Ainda via o sol e tinha certeza que o astro me via.
Lavei-me na primeira pia que encontrei enquanto lésbicas reais resistiam pixadas na parede do banheiro e caminhei até a sala pra conferir que meu lugar não estava vago. Resignada dirigi-me ao centro, onde descansei o peso da minha bunda enquanto tentava distinguir as letras brilhantes na minha cara. As cadeiras da frente estavam desocupadas, criando um vão providencial entre o professor e eu, o que lho permitia inspecionar o mais fino dos meus movimentos e me impedia de arrancar da bolsa meu novo livro daquele velho boca suja. Continuei a escrever em meu caderno. Tirei os sapatos. Saí da sala descalça, fumei um cigarro, voltei e por fim peguei o livro.
Nao consigo me lembrar o assunto da aula.
Não gosto de chantilly nem de celular.
Foi mais legal viver esse dia que narrá-lo.

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Sem platéia

Era uma vez um velho amor que se vestiu de arrogância inocente e entrou pela janela do meu quarto numa segunda-feira vazia. Esticou o corpo e passou a apontar minhas pernas pernas tortas, suas pernas fortes, o descompasso dos meus pés e sua capacidade de saltar.
Esparramamos sobre os lençóis que eu não havia trocado as fórmulas da cartilha que usamos durante dez longos anos para nos trazer exatamente ao mesmo lugar.
E eu fiquei ali, apertando entre minhas muletas aquela coleção de erros, organizando-os por ordem cronológica para que ele os esfiasse numa pasta amarela.
Eu era mais uma vez a bailarina cega, ouvindo a música composta para mim por maestro nenhum.
Era a dançaria surda, envolta pelos finos trapos do desprezo, sentada num tribunal onde os jurados não respiravam além dos muros da minha própria mente.
E então era eu eu mesma, rasgando toda a culpa e dançando nua na frente daquele pra quem eu sempre achei que devia desculpas.

E dancei de olhos fechados. Dancei até perceber que não havia mais nada naquele velho amor que se combinasse comigo, nem nada daquele velho amor na minha cama, esperando que eu me rendesse aos meus pecados novamente.
E dancei porque eu gostava de dançar.

E quando me deitei novamente, sozinha e exausta, molhei despreocupada o colchão com as gotas do suor que ninguém me ajudou a produzir e percebi que não me importava mais com o jeito como ele escolhia sofrer.
Eu não me importava mais com nada além de mim, era feliz e  não precisava de platéia.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Sorriso fácil

Levantei do ninho onde velhos passarinhos gastavam seus dentes desafinando a vida. Saí pelas ruas quentes carregando expectativa nenhuma e o combinado de dividirmos um pedaço daquela tarde. Os traços de seu rosto não passeavam pela minha mente vazia e preguiçosa, que colhiam cheiros, cores e lembranças apenas para cuspí-los pela janela do carro.
Dirigia devagar, 'olhando para a esquerda e para a direita, e às vezes olhando para trás'. Diminuí para admirar o homem que descia, dançando, roubando o papel do próprio vento, balançando a camiseta preta no ombro como uma capa que nossos antigos heróis vestiam, reluzindo o dia na pele branca, provocando as flores dos canteiros de novembro, que suspiravam enquanto murchavam, pois já não eram tão belas assim e sabiam que nunca seriam tão belas quanto ele.
Aspirei a inveja das flores, reduzindo ainda mais a marcha, procurando os desenhos que marcavam o peito que eu  tenho gostado de acariciar.
Ele era a própria rua, as flores e os heróis num mesmo corpo. Era o vento, o sol, os astros, a poesia e a loucura. Era pequeno, mas olhando à distância era o maior homem que a cidade já havia visto. Era um pequeno pra quem eu queria abrir a porta.
Desengatei e me reconheci naquele sorriso fácil, que ele oferece a qualquer um. Parei. Senti fome. Me dissolvi pra tentar suprimir o desejo, mas era pouco demais. E o nosso pouco foi suficiente.