quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A grande janela, e o antigo mapa

Ele não era gordo, mas via-se pela coluna ereta num porte requintado que apreciava a boa culinária, ou ao menos bons vinhos. Vestia-se simplório, porém a elegância dos gestos e o tom polido da voz traziam ao velho toda a pompa de alta casta social.
Sua presença impunha silêncio na sala, sem sufocar os presentes, e o sorriso omitido pela máscara do papel que cumpria atrás da mesa de madeira trabalhada proibia qualquer um de sorrir. Havia discordância entre sorriso e dinheiro e receio não declarado de que descontração espanta o lucro obtido na ação que ele se prestava em assinaturas de cheques. Não era autoritário, mas autoridade natural. Não ditava nenhuma regra, mas os presentes pareciam haver ensaiado cuidadosamente os passos para aqueles instantes. Poderia haver então, talvez, culpa por saber que a gente simples do lado oposto de quem vomitava tira de papel pela calculadora se desdobraria para pagar todos aqueles juros que ele calculava e que outrora -bons tempos, lembrava com pesar- não eram cobrados.
Mas o que mais chamou a atenção da menina não foi a distinção da figura curiosa que observava pela primeira vez; não foram seus discursos coerentes sobre a epidemia da ausência de fé e da transvaloração da ética religiosa; não foi o fogo contido pelos óculos quadrados enquanto fumegava pelos lábios críticas para a levianidade das pronúncias de quem se diz cristão e inverte o lugar de cristo, ocupando com perjúrios ou humanizando-o por demais... Perfurou o olhar da menina ao indagá-la por três vezes: "O que é se?", "O que é Deus", "O que é querer?". Encontraram, então, uma dúvida, uma divindade onipotente e uma mera vontade... E incendiaram a sala com os regojizos de quem já comeu de mais e o apetite de quem inicia-se na degustação... "Se Deus quiser" ... ela ria enquanto ele vociferava. E ela dividia seu interesse entre o que ele falava e o silêncio que invadia o décimo terceiro andar de um prédio comercial pela grande janela aberta.
Pela janela ela via-se tudo: a cidade e além... via-se edificações e então os morros azulados que cercam a selva de prédios em que eles já estavam acostumados a viver. Via-se aquele céu que escondia o ouro atrás de nuvens de puríssimo algodão. Via-se pessoas do tamanho de formigas e um grande espelho feito de água no meio da praça.
E o velho falava, mas ás vezes suas palavras eram atiradas pela janela, ou roubadas pelo quadro pregado na parede às suas costas, exibido para a sede dela. Era o mundo em perspectivas passadas competindo com tanta televisão. Eram cores mortas, caras mortas, histórias passadas... Era o passado da história ao descaso de quem assiste essa tal teletransmissão... Era tudo o que ela queria sem jamais fazer menção, em seu horário de almoço, ao ser escalada à companhia de confiança da gerente financeira que requeria àquele empréstimo.
Ar condicionado, sorrisos? Trajes sociais, uma secretária seguindo os padrões da moda? Pelas estantes retratos dos filhos, mulher, cão?
Não... pois naquela sala havia uma grande janela e um antigo mapa mundi... E a menina sabia que eles haviam contado ao velho todos os segredos da vida.

Um comentário:

  1. Belíssima forma de se viajar. Não poderia ser melhor. Estava com saudades de vir por aqui, dona CORUJINHA.
    Deixo um abraço!!!

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